Explorando
os sentidos - ouvir
Neiff Satte Alam
“...Ouvir os sons do mundo é uma
felicidade que somente os artistas recebem por nascimento. Os outros têm que
aprender.” Rubem Alves
O som nasce
do silêncio. O silêncio é a busca do som que, ao quebrá-lo, fará fluir um mundo
novo, um mundo onde as lembranças poderão ser reforçadas. Os sons de nossa
infância são um permanente mergulho no passado que dá sentido ao presente.
Lá
na Vila Olimpo, não no Olimpo grego, mas no de minha infância com diferentes figuras
mitológicas, mas totalmente incrustado no meu HD biológico, recupero cada som igual ou mesmo semelhante aos que
circulam no presente, uma realidade permanente sempre sustentada pelas
realidades passadas e transformada em alicerce para o futuro.
O
som das águas do Rio Piratini forçando passagem por entre os pilares de pedra
de uma ponte de ferro eternizada pelas lembranças, repete-se sempre que ouço a
força das águas da chuva forçando passagem por entre as pedras de calçamento
das ruas de Pelotas e penetrando pelos estreitos espaços das bocas-de-lobo.
Outro
dia, em uma das ruas da Praia do Laranjal, ouvi o som do apito do vendedor de
picolés, igual ao que ouvia na empoeirada Rua do Comércio, junto a Praça
Piratini, em Vila Olimpo. Parecia uma parada no tempo. Momentos importantes da
infância irrigaram meu cérebro, inclusive coisas que pensava não lembrar mais,
mas que percebi que foram importantes na minha formação afetiva e agora
preenchem o cérebro de substâncias que dão prazer, o prazer do encontro das lembranças com a realidade, do
ontem com o hoje, com as duas realidades transformadas em uma única...
Os
pardais, os grilos, as rãs e os cães que emitiam seus sons já desapareceram há
muito tempo, mas os sons de seus descendentes fazem com que a lembrança me
remeta às brincadeiras pelos pátios interligados do pequeno vilarejo, universo de
minha infância, caçando rãs, correndo ao lado dos cães que nos faziam companhia,
colocando os grilos, gafanhotos e outros insetos em garrafas para fazer
pequenos estudos que, com certeza, levaram-me a escolher a profissão de Biólogo
e ministrar aulas de Biologia por mais de quarenta anos.
Tinha
também o som do vento ao balançar as folhas de um cinamomo que era nosso
companheiro de brincadeiras, na calçada de minha casa. Um som que só não é mais
importante do que o das tábuas do piso da sala de estar quando caminhávamos de
tamanco de cepa de madeira. Até hoje sinto saudade de caminhar sobre este piso,
pois é o indicativo de que havia ali um lar onde havia ensinamentos, regras,
carinho e amor. Naquela peça, em momentos de leitura, no silêncio das tardes de
inverno, ainda recordo o som das folhas dos livros de capa dura de Monteiro
Lobato interrompido, muitas vezes, pelo apito do trem ao cruzar a ponte entre Vila
Olimpo e Vila Cerrito.
Hoje
aumentei o som do rádio, pois uma canção de carnavais antigos estava a ser
tocada. Era uma música do passado que irrigava de harmonia o presente, então
pensei : “o que há com os sons dos carnavais de hoje, onde está a harmonia, a
lógica das letras para que, no futuro, sejam as boas lembranças do passado?”
Foi neste momento que entendi importante rever os sons do passado ... escrever
sobre a importância deles ... irrigar o presente poluído de ruídos sem harmonia
com lembranças que reforcem a necessidade de explorar a criatividade de nossas
crianças respeitando o seu futuro, viabilizando os sons da biodiversidade, da
boa música, ensinando-as a ouvir e distinguir, pela audição, o bom do ruim.
Ouvir também é uma arte.
Explorando
os sentidos – olfato
Neiff Satte Alam
“...Quando
colho hortelã, libero em minha memória
as mesas de quitutes dos almoços dominicais na casa de minha avó. Era sempre
festa.”
Cheiros bons,
cheiros ruins; lembranças boas, lembranças ruins. Todos com importante
significado, pois é a soma de todos os odores que se formam as imagens, os sons
e os sentimentos de cada momento, de todos os momentos.
Em
um pilão de pedra, artisticamente modelado, era macerada a carne que se
transformaria em um delicioso quibe. As mãos de minha Avó Aziza seguravam com
graça e firmeza o macerador. Ao misturar a hortelã com a carne, um cheiro
característico tomava conta do ambiente. O aroma da hortelã predominava e acentuava
nosso apetite. Não precisávamos comer, se quer ver o quibe cru para ter a exata
noção do gosto. Quando colho hortelã, libero em minha memória as mesas de quitutes dos almoços
dominicais na casa de minha avó. Era sempre festa.
Água
Velva. Alguém lembra desta loção de pós-barba? Talvez a maioria dos pais dos
leitores lembre o perfume característico e inconfundível deste produto, com certeza
todos os filhos lembram-se de seus pais quando perfumes semelhantes aromatiza o
ambiente.
O
olfato, como qualquer outro sentido, tem que ser educado. Temos que saber usar
um perfume, pois é importante entendermos que perfumes masculinos servem para
atrair as mulheres e perfumes femininos para atrair os homens, trocá-los pode
dar confusão!
O
medo exala um cheiro característico e é
percebido pelos opositores. Serve para os animais racionais e para os
irracionais; a paixão também tem seu cheiro, em geral direcionado, pois, como a
flecha do Cupido, tem alvo próprio e determinado; A miséria, a dor e o
infortúnio revelam-se pelo odor próprio, assim como a felicidade e o bem estar
e, identificados, devemos nos responsabilizar pelas necessárias mudanças que
busquem a igualdade entre as pessoas.
As
novas tecnologias que pretendem substituir os livros impressos por livros
eletrônicos têm, no olfato, o seu mais poderoso inimigo. Os leitores habituais
afirmam que uma das boas coisas na leitura, além da qualidade do texto, é
sentir o “cheirinho” do papel. Alguns leitores chegam a não aceitar não serem
os primeiros a folhar os livros, revistas e jornais, pois o cheiro do papel
novo os atrai...
Os
ratos, ao sentirem o cheiro de seus predadores, mudam os caminhos habituais; os
cães são atraídos pelo cheiro da fêmea quando esta está no cio e pronta a
reproduzir; os lobos marcam seu território urinando em todos os obstáculos que
o limitam, pois a urina de cada um tem um odor diferente; um tubarão pode ser
atraído por sua vítima quando sentir o cheiro do sangue desta; o enólogo
reconhece a qualidade do vinho ao cheirá-lo.
Um
sentido instintivo, pois que inato, mas que poderá ser aperfeiçoado pelo
aprendizado e, junto com os demais sentidos, vai enriquecendo nosso universo
sensorial, distinguindo-nos dos demais seres vivos, pois, diferentemente dos
demais, damos sentido aos sentidos...